CONEXÃO 
A Arte e a cultura ao serviço de uma causa de filantropia 

Por  Virgilio  Coelho * 

Constitui para nós uma grande honra estar aqui entre os presentes com vista tomar parte nesta importante e inédita cerimónia e, deste modo, poder testemunhar esta extraordinária iniciativa concernente a abertura desta exposição de artes plásticas denominada CONEXÃO - dos artistas plásticos Augusto Ferreira, Horst Poppe e Álvaro Macieira -, possivelmente a primeira do género jamais realizada neste pedaço de terra do nosso País, que é a Ilha do Mussulo, e quiça em Angola. 

Em nosso entender, esta iniciativa não é únicamente inédita porque ela ocorre aqui e agora. É-o sobretudo, pela forma que ela toma e pelos requisitos diversificados que, certamente, foram necessários reunir, com vista a tornar possível este nosso ajuntamento, assim como, pelos fins que ela espera atingir. 

Nesta conformidade, esta exposição que se nos apresenta como apenas um móbil, tem por fim a colecta de meios financeiros com vista apoiar uma iniciativa do PROJECTO FUNDA DE COMBATE Á LEPRA, cujos objectivos acabam de ser devidamente explicados pelo Sr. Jean Pierre Brechet, e que, poderemos resumi-la numa única frase:" transformar a antiga leprosaria da Funda num Centro de Formação Socio-Profissional, com vista a integração dos antigos doentes". Nesta linha de pensamento, todos nós somos, assim, chamados a participar de uma iniciativa nobre e a todos os títulos louvável, já que, com o nosso engajamento e contributo poderemos ajudar na "recuperação e reintegração de um grupo vulnerável da sociedade angolana no sector produtivo da Nação". Tudo isso para concluir uma forma de agir até aqui muito pouco utilizada no nosso país e que consiste em colocar a Arte e a Cultura ao serviço de uma boa causa, de uma causa comum a todos. De aliar, como dizem os organizadorse desta iniciativa, "a cultura e o sector privado num contributo para a resolução de um problema social: o combate á lepra".

Este facto, mostra, igualmente, e com toda a clareza, as grandes possibilidades de efectivação de um casamento feliz entre a Arte e a Filantropia. Os cidadãos, aqui presentes, desfrutam de valores que porcerto lhes são intrínsecos, ao mesmo tempo que são chamados a participar de modo nobre nas realizações a que uma parte da sociedade se predispõe a organizar, em apoio, ou em prol de outrem, geralmente mais necessitados e em situação aflitiva. Tudo isso para concluir que a Filantropia não é mais do que « um sentimento de amor que move alguém na busca efectiva do bem e da felicidade do próximo, sem distinção; é um sentimento de amor pela humanidade». E é isso que, justamente, todos nós aqui, sem distinções, procuramos pôr em práctica, através da nossa própia participação individual. 

CONEXÃO, o título desta exposição não parece deixar dúvidas a ninguém. No entanto, e ainda que por poucos segundos, detenhamo-nos sobre o seu significado, que poderemos extrair de um qualquer dicionário:«Facto de estar ligado, unido, conexo, estado de coisas conexas, ligação e união. Relação, nexo, analogia, afinidade...entre coisas diversas», etc., etc. Se se tiver em conta o que dissemos anteriormente, veremos que através das nossas presenças neste acto, acabamos por ficar ligados a qualquer coisa. Além do título que dá á exposição, CONEXÂO é também o título de uma obra com as dimensões de um metro por dois metros e quarenta centímetros (1,00mX2.40m), constituindo o cartaz da própria exposição, e que foi pintada pelos três artistas que aqui expõem. Trata-se de um "tríptico", na qual, cada uma dos artistas apõe a sua marca e saber, sensibilidade, conhecimentos e prazer, expressões diversificadas de que resultam a obra de arte que será aqui mesmo leiloada. De acordo com os promotores desta iniciativa, «foi esta obra que inspirou a ideia de "Conexão"», significando para estes muito mais do que um simples exercício a que qualquer artista está habituado a fazer no seu cotidiano, para simbolizar «Fraternidade e diálogo entre culturas», colocar a Arte em serviço da vida, numa palavra Conexão resulta, pois, da experiência e de conhecimentos técnicos e artísticos destes três criadores do belo, que utilizam uma técnica praticamente desconhecida pela maioria dos artistas nacionais (ou, pelo menos, pouco utilizada por estes), técnica essa que tem sido desenvolvida pelo alemão Horst Poppe, «num suporte que mistura tela e cartão».  

No centro do tríptico encontramos uma belíssima reprodução de uma máscara, cujos traços, aparentam ser de origem Lunda-Cokwe, uma comunidade étnica acantonada no Nordeste de Angola, ou, quando muito, da região leste, algures no Moxico, onde membros daquela comunidade étnica também se acham fixados e onde disseminaram suas experiências e conhecimentos sobre os povos que aí encontraram e estabeleceram laços de casamento, nomeadamente com os Luvale.

Afiguram-se-nos sóbrias as linhas que enformam a máscara, sendo finos e marcantes os seus elementos distintivos, denotando sobriedade, gosto e saber. Em geral, as colorações das tintas utilizadas são quentes e a sua utilização segue uma práctica que é comum e bem visível na maioria das escolas de pintura em África, particularmente na zona equatorial em que Angola se acha implantada. Tanto a parte do lado esquerdo, pintada por Álvaro Macieira, como a do lado direito, pintada por Augusto Ferreira, subordinam-se ao centro, com vista a dar coesão á obra no seu todo. Porém, e apesar de tudo (e ainda bem que assim ocorre), cada um dos artistas na sua aparente liberdade, sobressai no conjunto da obra através da singularidade das formas de expressão que dão á obra. Macieira, no lado esquerdo, produz e reproduz umas quantas máscaras em finíssimos recortes, e particulariza muitos dos traços possíveis do objecto principal, no centro. Ferreira, do lado direito, particulariza e acentua alguns outros traços susceptíveis de fazer-nos compreender o contexto em que um tipo de máscara como esta actua na sociedade que a criou. O resultado final creiam-nos, é harmonioso e esplêndido, responde perfeitamente e com acentuadas marcas e dignidade aos objectivos esperados por este nosso encontro. 

Tanto o Álvaro Macieira quanto o Augusto Ferreira são artistas plásticos já amplamente conhecidos no meio luandense, e nomeadamente, da maioria das pessoas aqui presentes, estando por isso, possivelmente já habituadas a ver as suas criações plásticas em exposições, aqui e ali. Já Horst Poppe não, razão porque me parece mais curial iniciar por ele este bosquejo biográfico.

Quando pela primeira vez me foi dado a visualizar, através de fotografias, recortes escritos ou de partes de catálogos, a produção artística e intelectual de Horst Poppe, logo fiquei deslumbrado. Confesso que essa minha admiração á partida não era unicamente decorrente do tratamento vivo e brilhante que este sabe dar ás cores e delas, com traços simples mas metódicos, produzir harmonias salientes, belas. Viajei, muitas vezes, pelas duas ex-Alemanhas, e sempre que estou no estrangeiro sou compelido a visitar museus, exposições, participar em eventos, etc. A pintura alemã, seja aquela que foi produzida no Leste seja aquela que reproduz experiências do Ocidente da Alemanha hoje única, é portadora de heranças diversificadas, em que se singularizaram no tempo múltiplas e distintas escolas, algumas das quais encontraram fiéis seguidores fora das fronteiras desse belíssimo país.

E a obra de Horst Poppe, que é fruto de uma dessas múltiplas experiências, parece mostrar muito bem a singularidade dessa práctica e dessa experiência vivida e sentida por meus olhos, relativamente á utilização, muitas vezes simétricas das cores, dos sombreados e das formas, sobrepostas ou não, que articulam marcas e simbologias, ideias e matérias, para reproduzir signos e ideias diversificadas, harmoniosas.

De acordo com as informações que me foram postas a disposição, Horst Poppe integra o «Art 5», um grupo de artistas alemãs cujo movimento artístico está dedicado á promoção de novas formas de produção artística. Sua formação seguiu a linha inicial de um autodidacta, tento frequentado posteriormente o Atelier do Professor Jost Funke. Como já o dissemos anteriormente, suas preocupações actuais estão voltadas para o desenvolvimento de novas formas pictóricas utilizando novos suportes, em que mistura tela e cartão.

Originário de Bremerhaven, onde nasceu em 1943, Horst Poppe é Engº Mecânico e é nessa qualidade que está entre nós pela segunda vez, preparando-se para dentro de pouco tempo retornar á sua pátria, depois de ter permanecido pouco menos de seis meses. A primeira estadia que efectuou em Angola ocorreu entre os anos 1988 e 1991, ocasião em que aproveitara para frequentar alguns Ateliers de artistas nacionais e estudar arte africana. Nesta sua segunda estadia a Angola, efectuou contactos mais seguros com os artistas nacionais, com vista «ampliar os seus conhecimentos sobre a arte angolana», trabalhando igualmente com artistas na capital, em especial com o Augusto Ferreira e o Álvaro Macieira.

Augusto Ferreira de Andrade, originário de Xá Muteba, onde nasceu em 1946, é hoje um dos mais significativos e dos mais experientes artistas plásticos nacionais. Sua carreira como pintor, que se prolonga por cerca de quarenta anos de actividade, é testemunhada por cerca de uma vintena de exposições individuais e pela participação em mais de quarenta exposições colectivas, estando representado em museus e instituições e em colecções particulares, nacionais e estrangeiras. Detentor de vários prémios nacionais e internacionais, é autor de muitos selos que circulam em Angola desde 1977.

É o criador dos símbolos da PANA-Agência Panafricana de Informação e da APPA-Associação dos Produtores de Petróleo Afriacnos. 

Sua pintura está aliada ás mais distintas tradições do nosso país e materializa distintas expressões plásticas cujas origens poderão ser os «contos, as lendas, os provérbios e as estórias quase enigmáticas que constituem a especificidade angolana e afriacana». Pode dizer-se, sem medo de errar, que Augusto Ferreira terá bebido as experiências da «ideossincracia dos povos das Lundas, de onde é originário. A sua obra gira, assim, em torno da interioridade plena de memória de vivências». A sua obra é, ao mesmo tempo, baseada em figurações simbólicas ( veja-se, por exemplo, suas propostas dos «serenídeo» de sua última exposição (Cf. A Rítmica dos Ritmos, Le Bistrot, Ilha de Luanda, 01-10 de Dezembro de 1999), muito voltadas para os problemas e as necessidades das comunidades de pescadores e as evidências de interacções societais de raízes tradicionais e de soluções mágico-religiosas, que são muito evidentes na sua obra.

Na opinião de Augusto Ferreira, a sua relação com Horst Poppe tem sido de grande valia, tanto no plano estrito do trabalho de ambos os artistas, quanto no plano individual. A este propósito, esclarece:«...Horst Poppe que tem pesquisado imenso a nossa arte e tem estabelicido um diálogo frutífero com a nossa cultura. Ele é também um dos coleccionadores dos meus quadros. Já trabalhamos juntos no seu país. Cheguei também a  participar com ele na montagem de uma exposição na cidade de Bremen, do alemão Reinhard Niepage, em Abril de 1998. Foi ainda com ele que conheci muitos artistas plásticos da Alemanha, tais como Erich Zimmermann, Lissi Jacobsen, e do seu próprio mestre, Jost Funke, destacado artista plástico, professor e crítico de arte». 

Finalmente, o artista plástico Álvaro Macieira, revelado nesta disciplina há não mais de três anos, é dos jovens criadores nacionais o mais produtivo. Como ele próprio gosta de dizer, « o meu processo de criação artística é bastante agitado...e rápido». Em sua opinião, sua pintura prima « por um traço que considero africano, e rebuscado da estatuária, porque é um traço muito livre e reacriativo».

Na verdade, nestas breves palavras Álvaro Macieira resume a natureza da sua arte e de sua criação artística. Utilizando fundamentalmente a técnica do acrílico sobre tela, tem recorrido também a algumas experiências baseadas em restos de tintas: «vou deixando estar esses restos de tintas, sobretudo em cartão prensado. Isso há de resultar, acredito, em algo valioso e necessário, ainda que seja só para fazer instalação», conclui.

Seu imaginário, de que resulta o produto final da sua pintura, «é uma expressão pessoal, mas bebido sobretudo no imaginário colectivo deste país, das populações que aqui vivem e que o fazem andar. É esse nosso imaginário angolano e africano, que continua a ser alimentado pelos provérbios, pelas fábulas, pelos contos tradicionais e, enfim, pelos mitos, que são, geralmente, o cololário dos saberes acumulados e que resultam em autênticas e profundas filosofias, porque impregnados de conhecimentos antigos e novos, baseados na realidade, muito profundos. São esses saberes, que me têm alimentado e me têm conduzido enquanto artista», resume bem as origens e as causas da vitalidade da pintura que Álvaro Macieira faz.

2º Prémio do ENSA- Arte 2000, a pintura de Álvaro Macieira pode ser encontrada em colecções de museus e de particulares, em Angola e no estrangeiro. Acreditamos que, no âmbito específico da sua produção e criação da sua arte e savoir-faire, talvez este jovem ainda venha este ano a trazer-nos algumas agradáveis surpresas.

Para terminar, lembro que esta opurtuna iniciativa que levou a reunir aqui estes três experimentados criadores do belo, três amigos e camaradas á volta de múltiplas experiências e valores, com vista oferecer o melhor que estes sabem fazer em nome de uma boa causa---a colecta de valores pecuniários com vista desenvolver um projecto de apoio á integração dos doentes atingidos pela lepra na Comuna da Funda----só pode ser compreendido graças ao notável engajamento da JEMBAS-Assistência Técnica, Lda., nomeadamente de quem a dirige, o Senhor Étienne Brechet, para quem são, finalmente, dirigidas estas últimas palavras de apreço e de agradecimento, em nome de todos os presentes, pelo extraordinário acolhimento nestas belíssimas instalações. 

*Antropologo
Mestre em Antropologia pela Ecole Pratique de Haut Etudes (EPHE), Universidade de Paris, Sarbone, 1.° Assessor do Ministerio da Investigacao e Cultura (MEC) e Secretrio Geral da Associacao de Antropologos e Socialogos de Angola (AASA)